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Humanização

Que se entende por humanidade e humanização?
Gregório BaremblittComo é sabido, todas as palavras têm muitos sentidos. Essa variedade não depende apenas dos significados que o dicionário lhes atribui com relação às coisas que designam (semântica). Também tem a ver com o enunciado ou frase, ou com o discurso, ou com o texto todo no qual estão incluídas e onde entram em relação com as outras palavras (sintática). Mas, principalmente, as palavras se caracterizam pelo seu “uso”, ou seja: por quem as pronuncia, onde, quando, para quem, para que, como, quanto são ditas, assim como de quais outras modalidades de expressão semiótica são acompanhadas (pragmática).

(Para uma análise reveladora dos sentidos das palavras Humanidade e Humanização, na Filosofia, na Ética na Linguagem e na Clínica, veja-se o artigo “Um projeto de Humanização: para que, para quem?” incluído na Bibliografia deste manual).
É claro que, ademais, as palavras mudam totalmente de sentido se a especificidade de seu “contexto” é filosófico, científico, literário, político, religioso ou mitológico, popular, ou seja, pelo "gênero" do texto ou discurso que integram.
Por outra parte, o significado das palavras depende da língua “oficial” a que pertencem, ou de um dialeto dessa língua, ou de uma gíria própria de minorias de toda natureza integrantes da sociedade e onde chegam a dominar a citada língua oficial.

As palavras não existem desde sempre nem para sempre. Elas “nascem”, “crescem”, “envelhecem”, “morrem” ou desaparecem, e as Línguas também.
Deve-se ter muito em conta todas essas vicissitudes e dimensões ao se tentar definir qualquer palavra, porque senão, incorre-se na tendência a caracterizar um vocábulo como se tivesse um sentido único, universal e eterno (que às vezes chamamos de “natural”), sendo que esse sentido é aquele que cada sujeito, grupo, nacionalidade, raça, cultura, classe sócio-econômica ou profissão, acham ser o “único” e o “próprio” da língua.
De acordo com a pragmática, toda palavra é “palavra de ordem” e leva implícita, tanto uma potência produtiva (que aqui chamaremos de humanitária) como um poder impositivo, reprodutivo ou anti-produtivo, que sempre é o dominante. O chamado “sujeito da enunciação”, ou seja, o verdadeiro emissor dessas mensagens são agenciamentos coletivos de enunciação que, a rigor, são entidades instituídas. Só criando alternativas que fujam dessa enunciação é que se consegue inventar enunciados produtivos que estão a favor da Vida, dito num sentido amplo.

Nas diferentes épocas ou eras da História, os sentidos das palavras humano e humanidade têm muito mais de diferente do que de comum.
Não podemos aqui estender-nos demasiado sobre o tema, mas daremos apenas alguns exemplos.
Em muitas comunidades primitivas, a diferença entre os animais, os deuses da terra (Humus) e os homens (tanto entre os vivos como entre os mortos) era relativamente pouco clara. Em algumas delas, o pronome pessoal eu não existia na língua e o equivalente do que para nós é um ser humano era grupal ou coletivo. Não obstante, algo equivalente à condição de humano era reservada aos membros do clã ou da tribo, sendo que os “outros”, às vezes, não eram considerados humanos. Mas, isso não impedia que o inimigo corajoso fosse livrado da escravidão e incorporado à tribo, ou comido, para serem introjetadas suas virtudes. Seus médicos eram os xamãs ou os bruxos da tribo, e a noção e vivência de saúde ou enfermidade estavam estreitamente ligadas à harmonia ou desarmonia com o deuses da terra, com os antepassados, e com o cumprimento do códigos que regiam a vida da comunidade.

Nos grandes Impérios orientais, o Imperador Déspota era filho direto do Deus e, ao mesmo tempo que divino, ele era o único ser parecido ao que hoje chamamos de humano, sendo que, nem os nobres nem os escravos eram “humanos” nessa magnitude. Seus médicos eram “magos” e algo vagamente equiparável ao que chamamos de saúde ou enfermidade só interessava no concernente à família imperial e à nobreza. A saúde e a enfermidade tinha a ver com a harmonia ou desarmonia com os deuses das alturas, os prêmios e castigos correspondentes.

Em outras civilizações imperiais, humanos eram exclusivamente os membros da sociedade em pauta, eram considerados e denominados como algo similar ao humano contemporâneo. Todos os que não pertenciam a essa comunidade, os estrangeiros, não eram considerados humanos.

Na Grécia Antiga e na Clássica, as mulheres, as crianças, os escravos e os estrangeiros não eram cidadãos e, em graus variáveis, não eram tidos como humanos. Tal tradição discriminatória se prolongou no Império Romano, especialmente em suas numerosas colônias, assim como com os bárbaros que, decididamente não eram considerados humanos (apesar de, amiúde, ter uma organização nômade muito mais “democrática” que a imperial). A palavra "bárbaro"quer dizer, simplesmente, "que não fala latim". O célebre lema "mens sana en corpore sano" refletia o ideal de saúde dos gregos e seus grandes médicos eram também filósofos, como Hipócrates e Galeno.

Com o surgimento das grandes cidades comerciais ou mercantis, seus habitantes “cidadãos”, se tornaram privativamente sinônimos de humanos, seu modo de organização social era uma “civilização” (de “civitas”, cidade) e sua forma de comportar-se se qualificava pela “urbanidade”(urbe), assim resulta clara a propriedade da natureza humana pelos civilizados em oposição aos bárbaros e aos selvagens.
Contudo, foi no seio do Império, e a partir da religião judaica das colônias do Oriente Médio, que nasceu o humanismo do Cristianismo primitivo, cuja concepção das virtudes que eram paradigma de humanidade ( por imagem e semelhança com a divindade) teve uma influência incalculável na cultura ocidental. Apesar de sua fundamentação deísta, transcendente e ultraterrena, teológica e metafísica, com suas limitações moralizantes e piedosas, a ética e a organização social implícitas nesse Cristianismo primordial, foram uma contribuição irreversível ao conceito de Humanidade e à prática da Humanização, matizados depois pela Reforma e a Contra-reforma.

As deformações do conceito e o valor de Humanidade próprios da Idade Média (e ainda até metade do século XVII), foram muito negativas. Simultaneamente, coexistiam as campanhas de evangelização humanitária com os genocídios da conquista e das cruzadas. Ao mesmo tempo em que os animais eram julgados pelos tribunais como responsáveis por delitos (como se fossem humanos), os não católicos, os heréticos, as supostas feiticeiras, eram qualificados como demônios e não como membros da Humanidade.
As cartas de Colombo à rainha de Espanha mostram claramente que, com respeito aos indígenas, o descobridor oscilava entre duas posições: ou os selvagens eram humanos, inteiramente iguais aos conquistadores (o qual não era totalmente exato), ou eram diferentes, hierarquicamente inferiores, chegando á inumanidade ou à animalidade. Os encarregados da “saúde espiritual” eram os sacerdotes, e os da saúde física eram os conhecidos cirurgiãos- barbeiros, uma mistura de ofício com profissão médica incipiente.
A Renascença, especialmente a italiana, com seu retorno ao espírito dionisíaco grego, significou um reflorescimento da cultura, das artes e da vida. O humano e o divino se aproximaram no senso estético e numa ética do prazer e da alegria. Aí foi que nasceram os primeiros grandes médicos proto-científicos, dedicados à investigação anatômica e fisiológica, na que superavam os preconceitos e proibições do medievo.
A Reforma, constituída pelo protestantismo luterano, calvinista ou puritano, ao mesmo tempo em que “mundanizou” as relações do homem com a divindade e que criticou e racionalizou a mediação da Igreja católica obscurantista e corrupta, preparou um conceito de homem próprio da Modernidade, dotado de todas as potências da razão científica mas submetido ao culto ao trabalho e à produção de bens de troca.
Como é sabido o começo da Modernidade se baseia em três grandes transformações: a científico-tecnológica, a industrial e a político-democrática (nas suas diferentes versões- liberal, socialista etc). Por sua vez, pode-se concordar com que os acontecimentos históricos mais expressivos a esse respeito foram as “revoluções” norte-americana, francesa e inglesa, a partir do século XVII em adiante. Os principais ideais dessas transformações e revoluções foram os de liberdade, igualdade e fraternidade –, os quais, independentemente de como sejam entendidos, continuam sendo uma orientação respeitável que se tornou quase sinônimo da condição humana universal e desejável.

Na Modernidade, a categoria de Humano tendeu a universalizar-se, todos os tipos de homens foram considerados humanos e integrantes de uma espécie comum, a Humanidade. As diversas Declarações dos Direitos Humanos insistem nessa generalização. Mas, uma das peculiaridades desses documentos (muito avançados de júri, e pouco aplicados de fato) é que costumam dar mais importância à condição humana dos indivíduos do que à Humanidade nas sua diversas agrupações, incluída a Humanidade no seu conjunto total.

Finalmente, é sabido que, ainda com as imperfeições da legislação em matéria de Direitos Humanos, os mesmos deixam muito a desejar no seu cumprimento concreto. Mais da metade da Humanidade vive numa condição de miséria, pobreza e exclusão desumanas e o tratamento que o resto da Humanidade lhes dá ainda tem pouco ou nada de humanitário.

Os pensadores, técnicos e militantes que se têm ocupado destes problemas, apesar de bem reconhecer uma longa tradição religiosa de caridade, beneficência e filantropia em todos os tempos e segmentos sociais, assim como uma orientação governamental que visa ao chamado “bem comum” (do qual uma das expressões máximas tem sido o Estado de Bem Estar), sustentam e lutam por uma organização social mundial na qual o “humano” se define pela prioridade dada aos cuidados da humanidade na sua totalidade, ainda em detrimento relativo e provisório dos direitos ( e desde logo das prerrogativas) de cada um dos seus membros, ou de setores privilegiados dos mesmos. Tem até quem afirma que a condição humana, tal como tem sido definida e possibilitada até o momento, está marcada pela insuficiência e a sujeição a valores obsoletos, e que devemos pensar e projetar uma mudança radical da mesma que, por não dispor de outro nome adequado, teríamos que designar como sobre-humana. A mesma inclui o cuidado concomitante da natureza e um direcionamento prioritário, nesse mesmo sentido, do parque tecnológico e industrial.

De acordo parcialmente com todas as definições mencionadas e, especialmente, com a tendência citada no último parágrafo, as condições objetivas e subjetivas, para obter um alto grau de Humanidade para todos os membros da espécie humana, estão já dadas pelo alto grau de potência produtiva da civilização contemporânea. Para estas orientações, humanizar consiste simplesmente em canalizar tais capacidades no sentido de estender e distribuir, integral e igualitariamente à Humanidade, uma série de benefícios e resultados considerados propriedades sine qua non da condição humana.

As mesmas são: atenção às necessidades básicas de subsistência, por mais variáveis que elas sejam (alimentação, moradia, vestuário... ), educação, segurança, justiça, trabalho, acesso á liberdade de associação, de pensamento e de expressão, de ir e vir, de prática política, científica, arte, esporte, tempo livre, culto religioso, ... e, para o que aqui nos interessa especialmente: o cuidado da saúde. É claro que a definição da qualidade e quantidade dessas necessidades é histórica e culturalmente produzida, mas deve ser concebida e realizada de acordo com o que já se pode, e não apenas pelo que aqueles que podem querem.

Um famoso lema resume a definição de Humanidade a um funcionamento de toda a espécie Humana que vise conseguir que “Á todos seja dado acesso ao que precisam segundo suas necessidades e a cada um as condições para desenvolver e exercitar suas capacidades”... especialmente, as necessidades daqueles cujas capacidades sejam decididamente significativas para contribuir a que todos tenham suas necessidades satisfeitas e que tais necessidades se definam mais e mais além do que historicamente se considera como “básicas”. Tal proposta responsabiliza toda a Humanidade por esse objetivo, em proporção com o grau de potência da qual cada segmento social dispõe atualmente. Esse lema nada tem a ver com outro, lamentavelmente “na moda”, que propõe apenas “igualdade de oportunidades para competir no mercado”, deixando exclusivamente para o Estado ( afetado atualmente por uma considerável impotência) o dever de velar pela satisfação das necessidades e pela capacitação elementar dos “menos favorecidos” (que são a imensa maioria da população mundial). Tal proposta deixa toda ação de ajuda (além das obrigações tributárias) ao livre critério e vontade dos que mais podem e sabem, mas apenas quanto e como queiram.
Antes de concluir este capítulo, devemos reconhecer que o propósito ou meta de Humanizar, em todos os sentidos apontados, mais no caso da saúde, implica aceitar e reconhecer que nessa área e nas suas práticas em especial, subsistem sérios defeitos e carências de muitas das condições exigidas pela definição da concepção, organização e implementação do cuidado da saúde da Humanidade, tanto por parte dos organismos e práticas estatais, como dos da Sociedade Civil.
Como se pode entender no artigo acima citado, as organizações, agentes e práticas contemporâneas da saúde variam entre um trato (dito em geral e particularmente comunicacional, entre si e com os usuários) que vai desde o uso de uma linguagem técnica impessoal (que supõe expressar certos ideais de cientificidade) até outro autoritário ou paternalista que infantiliza aos usuários, passando por modalidades que vão da homogeneização à indiferença (os agentes não chamam o paciente pelo seu nome, não olham para seu rosto quando falam, gritam com ele etc).
Devemos acrescentar, também, que a linguagem falada, ainda que respeite certas normas de adequação sintática, semântica e pragmática funcional às exigências assistenciais, não deixa de supor uma superioridade e ainda uma exclusão de outras semiologias (corporais, gestuais e dramáticas) que são do acervo dos usuários, e cujo emprego pode Humanizar consideravelmente o trato assistencial.
Se os hospitais começaram sendo “derivados” dos cárceres, dos abrigos para indigentes e de espaços de clausura e isolamento para enfermos de doenças epidêmicas incuráveis, estabelecimentos estes nos quais o trato correspondia a uma intenção de castigo, eliminação ou segregação social, os Hospitais “modernos” correm o perigo de se tornarem equipamentos de controle social sobre “grupos de risco”, para a identificação e manipulação das “minorias” excluídas, marginalizadas, desinseridas, desfiliadas, que ameaçam a ordem instituída dominante e as pessoas dos seus proprietários e beneficiários. Voltaremos sobre o tema no percurso destas páginas.
Se tivéssemos que resumir a missão de humanização num sentido amplo, além da melhora do trato intersubjetivo, diríamos que se trata de incentivar, por todos o meios possíveis, a união e colaboração transdisciplinar dos técnicos e funcionários assim como a organização para a participação ativa e militante dos usuários nos processos de prevenção, cura e reabilitação. Humanizar não é apenas "amenizar" a convivência hospitalar, senão, uma grande ocasião para organizar- se na luta contra a inumanidade, quaisquer que seja a forma que a mesma adote.

* Texto do Manual de Humanização da Assistência Hospitalar – Região Centro-Oeste.


QUE SE ENTENDE POR SAÚDE, ENFERMIDADE PREVENÇÃO, DIAGNÓSTICO, ENCAMINHAMENTO, TRATAMENTO, CURA E REABILITAÇÃO?*

Gregório F . Baremblitt

Os termos que compõem o título deste capítulo são prevalentemente próprios das ciências e práticas médicas. Se bem é certo que a Medicina tem sido definida muito eloqüentemente como a arte e a ciência de preservar e incrementar a saúde, assim como de curar a enfermidade e reincorporar à sociedade??, é preciso fazer algumas considerações sobre o particular.
Que a Medicina seja concebida e praticada com muito de inspiração artística é um matiz de enorme dignidade e muito recomendável. A arte talvez seja a atividade humana mais elevada, na medida em que ela tem a ver, de uma forma muito pronunciada, com a vocação, a inspiração, a criação, a invenção e a audácia e, ao mesmo tempo, com a harmonia, o equilíbrio e a dedicação mais devotada. Quiçá, a arte seja uma das características mais essenciais da condição humana. Humanizar, de acordo com estes valores, consiste, fundamentalmente, em tornar uma prática bela, por mais que ela lide com o que tem de mais degradante, doloroso e triste da “natureza” humana: o sofrimento, a deterioração e a morte.

Mas a Medicina não é, rigorosamente falando, uma ciência; ela é um campo de aplicação teórico-prático de muitas disciplinas científicas, tanto mais quando, na atualidade, a mesma tem se multiplicado, superespecializado e sofisticado ao infinito. Na realidade, não tem disciplina contemporânea que não tenha uma participação no domínio médico. Tanto as ciências exatas, como as naturais, as sociais e todas as subdisciplinas fronteiriças ou limítrofes que surgiram no espaço entre elas e na interpenetração de cada uma delas dentro das outras têm seu papel na Medicina de hoje. Tanto como especificidade quanto como profissão, todas têm a ver com o território médico. Os ofícios que fazem a cobertura, por exemplo, da segurança, da limpeza, da cozinha ou da conservação cotidiana dos prédios e outros equipamentos acostumam a ter uma relevância menor na Medicina atual, apesar de, como veremos, serem da maior importância no conjunto da máquina da saúde.

Se toda esta constelação de saberes e afazeres se concebe e exercita estreitamente articulada e interpenetrada, minuciosamente (embora que aberta e dinamicamente) planejada, programada, amplamente disponível e permanentemente auto-avaliada e reformulada com a participação e ainda com a cogestão de todos os envolvidos, ela pode aperfeiçoar-se de maneira contínua e até aos limites insuspeitáveis. As diversas organizações, estabelecimentos, equipamentos, agentes e atividades de saúde funcionam, em geral, correta e efetivamente, mas podem superar-se exponencialmente, a serviço de seu principal destinatário: os usuários dos citados serviços e a sociedade em geral.

Como se pode apreciar nos capítulos anteriores, desde as épocas primitivas em que a atenção à saúde não estava separada do rito, do mito e do conjunto das cerimônias comunitárias, passando pela Grécia dos médicos filósofos e pelas conjunções medievais entre religião, “barbeiros” e cirurgia, até chegar à hipercomplexa parafernália de nossos dias, a medicina nasceu “multi”, “poli”, e hoje tende, decididamente a ser “trans”.

Esse prefixo trans, implica, antes de tudo, transdisciplinar (homogêneo e homólogo)??, mas também que, sem perder de vista que se trata de uma área de concentração de conhecimentos e de práticas sui generis, com procedimentos e objetivos que lhe são próprios, a saúde é uma rede hipercomplexa (heterogênea e heteróloga), internamente muito diversificada e externamente interpenetrada com o conjunto de todas as instituições, organizações, agentes e práticas da vida humana, dito no sentido mais amplo possível.

É claro que, segundo o exposto, a Medicina conta com uma extensa série de subespecialidades: preventivas, diagnósticas, curativas, de reabilitação (enumeradas desordenada e incompletamente) clínica, cirúrgica, de urgência, de quadros agudos e crônicos, toxicológica, traumatológica, infectológica, epidemiológica, imunológica, metabólica, alergológica, oncológica, genética etc, ademais de outras como Medicina do trabalho, do esporte, rural, urbana, de família etc. (sem sequer mencionar as clássicas como ginecologia, obstetrícia, urologia, psiquiatria, neurologia, pneumologia, pediatria, geriatria, gastroenterologia, cardiologia, endocrinologia, traumatologia, ortopedia, otorrinolaringologia, dermatologia, oftalmologia e outras).

Mas, justamente, se essas já numerosas distinções internas devem operar em rigorosa conexão e interpenetração transdisciplinar, a ampliação heteróloga dessa rede trans a tudo aquilo que (para não repetir) denominaremos não-médico, se seguimos ao pé da letra os critérios expostos, torna-se bastante complicado definir o que é prevenção, diagnóstico, encaminhamento, tratamento, cura e reabilitação.
Em um já distante Congresso de Medicina realizado na localidade de Alma Ata???, se optou por definir os diversos passos que acabamos de enumerar como prevenção primária, secundária e terciária, ou seja: impedir a enfermidade, as recaídas, as seqüelas e intercorrências e a exclusão social???

Como quer que seja, o que podemos assegurar é que, de acordo com estas tendências, perde sentido, sem dúvida, a definição de saúde, não apenas como ausência de enfermidade, senão ainda como qualquer caraterização de otimização que não inclua nela: um alto grau de excelência física, psíquica, social, cultural, comunicacional, cívica, isto é, de dignidade humana em sentido amplo.

A tentativa de definição antes apontada modula, necessariamente, todas as outras: a prevenção não se pode entender apenas como um conjunto de medidas específicas para impedir a enfermidade, ou o diagnóstico como o enquadramento do paciente numa entidade nosográfica ou numa síndrome, tenha ou não uma semiologia, etiologia, etiopatogenia, anatomia patológica e uma indicação terapêutica exclusiva clara e taxativamente delimitada. O tratamento e a cura não se limitam, então, de maneira alguma, à atenção e solução de um ou de alguns dos fatores causais, antes detalhados, que interveio na deflagração da doença tal como a caraterizamos.

Sem descartar esses clássicos passos, operações e recursos, reiteramos que se trata de prevenir, diagnosticar, indicar, tratar e reabilitar o que, na falta de um termo melhor, denominaremos situações existenciais ou de VIDA, definidas e abordadas com a maior extensão que nossos recursos de toda índole nos possibilitem.

Vamos citar apenas um exemplo estridente dessa dificuldade: é absolutamente público e notório que no Brasil os problemas da miséria e da pobreza, entre outras carências, ocasionam a falta de condições adequadas nutricionais, de moradia, de água potável, de esgoto, de saneamento básico, de informação higiênica e propedêutica e assim por diante. A incidência dessas deficiências na problemática das enfermidades infecto-contagiosas e parasitárias (e outras conexas) é incalculável: - onde começam e onde acabam os domínios e as responsabilidades propriamente “médicas” na prevenção e erradicação, não apenas dessas enfermidades, senão de suas pré-condições causais? Sem pretender responder detalhadamente a essa radical pergunta, nos aventuramos a recomendar que em cada uma das operações de saúde que estão enunciadas no titulo deste capítulo é melhor somar que subtrair e/ou separar.
Pois bem: todo o dito até aqui, que talvez seja mais que conhecido pelos leitores, tem como finalidade principal apenas deixar enunciados alguns requisitos absolutamente indispensáveis para a construção de uma estrutura e uma dinâmica moderna de cuidados da saúde da população brasileira, a saber:
1) O aperfeiçoamento incessante do trabalho em termos de formação, informação, comunicação, cooperação, colaboração, intercâmbio, revezamento, articulação e interpenetração... de todas as instituições, organizações, estabelecimentos, equipamentos, agentes, usuários e práticas, governamentais e não governamentais, públicos e privados, médicos e não médicos, em todos e em cada um dos passos e tipos de ações de saúde.
2) Os fundamentais propósitos e conseqüências desses princípios são: a evitação da multiplicação repetitiva, superposição, não hierarquização, dispersão, isolamento, contradição, superficialidade, paliatividade, desnecessidade, excessiva improvisação ou rotinização, desperdício de todo tipo de recursos, iatrogenia, exclusivismo médico generalista ou especializado e, ditos num sentido amplo ou restrito que depois definiremos, o maltrato e desumanização dos agentes e dos usuários.
3)Dentro dessa lógica e dessa ética, assim como da sua implementação, as duas morfologias organizacionais ou dispositivos mais típicos são: as Redes de pequeno, médio ou grande porte (homólogas e heterólogas) em nível dos Grupos de Trabalho de Humanização hospitalar e das Equipes Transdisciplinares.
4) Embora que voltaremos sobre o tema, definiremos aqui de maneira sucinta o que entendemos por Rede, especialmente aplicada ao Programa de Humanização dos hospitais. Uma Rede, no sentido acima exposto, consiste em um dispositivo de: conexão, articulação e interpenetração, de todas as políticas, logísticas, estratégias, táticas, técnicas, organizações, estabelecimentos, equipamentos, agentes e práticas referentes à Saúde Pública.
Esta Rede se propõe ser descentralizada, consultiva, participativa e democrática, considerando que, em última instância, sua autoridade máxima é o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Assistência à Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, cujo dever é cumprir, supervisar e fazer cumprir as leis maiores desse âmbito, assim como coordenar, planejar, executar, avaliar e adequar as políticas e diretrizes de mais alto nível, nos aspectos econômicos, administrativos, financeiros, contáveis e organizativos, e também científicos específicos.
A estrutura, recursos, funções e ações dessa Rede deverão ser ordenadas segundo uma hierarquia de premência que contemple as necessidades, desejos e demandas do povo brasileiro, definidas não apenas segundo os critérios dos órgãos incumbidos, senão, também, segundo a expressão popular direta sobre a questão. O programa de Humanização dos hospitais sustenta que é preciso priorizar os estabelecimentos que se ocupam de urgências e emergências, assim como os que trabalham com gravidez e partos de alto risco, mas isso não implica desconhecer o imperativo de aperfeiçoar o conjunto de todos os estabelecimentos da saúde e sua conexão com os recursos da sociedade inteira que estão ligados aos serviços específicos da saúde.

A Rede, não obstante a decisão de começar pelos Hospitais, poderá e deverá incluir a colaboração com outras grandes entidades do Estado e de seus três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em todos e em cada um dos seus níveis, podendo incluir a cooperação com entidades, recursos, programas e ações de natureza civil, religiosa ou privada, locais, nacionais, regionais ou internacionais, através de diversos tipos de convênios, contratos ou acordos.
Mas, principalmente, a Rede deve tender a propiciar e incrementar a crescente participação dos usuários, suas famílias e próximos, assim como das suas agregações e movimentos representativos em todos os momentos, etapas e funções dos serviços, não só da Saúde, senão de toda índole, que possam aportar contribuições para a ampliação e aperfeiçoamento dos objetivos, metas e resultados no campo da Saúde Pública.

No Programa Nacional de Humanização da Saúde, distinguimos e classificamos, dentro da Rede, um setor homólogo (mais diretamente relacionado ao campo da Saúde) e outro heterólogo (menos específico, mais ligado ao campo da Saúde por inúmeras possibilidades de ajuda à mesma).

A Rede deve procurar manter a autonomia relativa dos seus diversos componentes, dentro dos limites dos deveres e direitos atribuídos e garantidos pela lei, mas também, deve propiciar, nos diferentes segmentos, a iniciativa para a invenção de novas possibilidades de toda natureza, tendentes a melhorar as aspirações e realizações da Humanização no domínio da Saúde Pública.

Alguns dos requisitos que são indispensáveis para a formação e funcionamento corretos da Rede são: a) a ampla difusão da identidade dos seus legítimos gestores, dos seus propósitos e dos benefícios que podem produzir para a população brasileira; b) a identificação e localização dos setores sociais interessados na sua integração; c) a acessibilidade e receptividade dos oferecimentos de colaboração por parte dos organismos encarregados de tal função; d) a qualitativa e quantitativamente ampla, freqüente, rápida e clara comunicação através de todos os meios atualmente disponíveis; e) a produção de todo tipo de recursos de encontro, publicações científicas, meios audiovisuais e cinematográficos que documentem as vicissitudes, acertos e erros, em suma, os conhecimentos e experiências do Programa de Humanização dos hospitais em especial e do aparato da Saúde Pública em geral.

É necessário afirmar e prever que, fora da sua estrutura e funcionamento formal e macroscópico (marcadamente planejáveis, controlável e previsível), nas unidades seja de pequeno, médio ou grande porte, a Rede, devido aos ideais democráticos que inspiram seu formato, seguramente operará de uma maneira transversal, espontânea e micropolítica, da qual se pode esperar insuspeitáveis realizações. Atualmente, tem-se aperfeiçoado os conhecimentos em gestão, planejamento, administração, comunicação, treinamento de agentes e avaliação quantitativa e qualitativa de diagnóstico e de resultados. Não obstante, tais avanços não têm sido aplicados exaustivamente na maioria dos hospitais e nas redes que eles formam. Ao mesmo tempo, essas tecnologias, amiúde, não são capazes de contemplar os aspetos micropolíticos e inconscientes da montagem e funcionamento das organizações e suas redes. Especialmente, não estão preparadas para propiciar a democracia direta e a participação protagonística dos usuários nas citadas análises e gestões para torná-las o mais auto-analíticas e autogestionárias possível.

6) A outra peculiaridade que consideramos essencial para o Programa de Humanização (tanto nos hospitais como na formação e funcionamento da Rede) é o dispositivo de trabalho com Equipes Transdisciplinares. Teremos que ser sintéticos na exposição dos seus atributos.
Diferenciamos Transdisciplinar de Poli, Multi, e Interdisciplinar. As equipes com as características significadas por esses prefixos, são agrupações de agentes, que colaboram desde uma definição fixa e externa da sua identidade específica e profissional que, em alguns casos, ademais de conservar seus privilégios tradicionais, até “acumulam” as prerrogativas de seus diferentes lugares nas hierarquias organizacionais.
Na equipe Transdisciplinar, tende-se a uma mútua formação elementar contínua dos seus integrantes nas teorias, métodos e técnicas das suas respectivas especificidades e profissionalidades, com o fim de, sem provocar nenhum tipo de confusão, propiciar ao extremo, tanto a exploração exaustiva das interfaces e interpenetrações das suas capacidades e funções, como a mobilidade, a substitutividade dos “papéis” teórico-técnicos e, ainda, fundamentalmente, a invenção de outros radicalmente novos, requeridos pela tarefa.
Finalmente, é importante destacar que a equipe Transdisciplinar pode, eventual ou regularmente, incluir os que desempenham os denominados “ofícios” (não qualificados como profissões) e ainda, da mesma forma, os usuários e/ou seus representantes, assim como representantes da comunidade organizada.

A Equipe Transdisciplinar deve sustentar um processo contínuo de auto-análise e de autogestão para examinar todos os níveis (consciente, pré-consciente e inconsciente) da sua implicação na tarefa, examinando as relações de subjetividade e de alteridade entre seus integrantes, outras equipes, o Grupo de Trabalho de Humanização do Hospital, outros níveis e segmentos do mesmo, e da Rede homóloga e heteróloga em geral.
O grupo Transdisciplinar tem uma dupla tarefa: a de realizar sua função determinada no conjunto organizacional e a de construir-se continuamente como grupo transindividual. Um grupo transdisciplinar protagônico, isto é, plenamente auto-inventado, configura um dispositivo que não apenas é, como se costuma dizer, “algo mais que a simples soma das suas partes”, senão, uma nova realidade, produtora de uma nova subjetivação, que já não é nem individual, nem coletiva. Ë multiplicitária e singular e se exprime pelos sujeitos, agentes e profissionais que a integram, mas sem ajustar-se ao que eles eram como identidades antes de transformar-se nesse dispositivo. Chamamos multiplicidade a toda realidade que não funciona sem transformar-se e não se transforma sem funcionar, ou seja, que se produz na medida em que atua e atua na medida em que se autoproduz.

A Equipe Transdisciplinar, que figura formalmente em todas as diretrizes, regulamentos e programas de saúde (e de outros campos), é um dispositivo sumamente delicado, sofisticado e complexo. Quando se supõe que o mesmo “nasce feito” ou que sempre se faz sozinho, se desconhece que, amiúde, ele precisa da intervenção externa de especialistas na constituição, implantação e aperfeiçoamento de tais agenciamentos. Os principais obstáculos que conspiram contra a constituição e desenvolvimento das Equipes transdisciplinares são: o individualismo, o "narcisismo das pequenas diferenças" (como dizia Freud), as hierarquias injustas dadas pela divisão técnica e social do trabalho, a onipotência de cada especificidade e profissão que acredita paradoxalmente ser "a única e a melhor", o sentimento de superioridade dos "experts" por relação ao saber e o saber fazer espontâneo dos usuários, o medo à perda da identidade e a uma suposta caotização das diferenças, o temor à crítica quando o dispositivo propicia a plena exposição das limitações e erros de cada especialidade e de cada agente, a possível perda de privilégios etc.

Em suma: entendemos por saúde o pleno exercício de todas as funções e funcionamentos potenciais e atuais do conjunto das comunidades e de cada um de seus integrantes no plano social, subjetivo e corporal. Entendemos por enfermidade a não realização de quaisquer de todas as virtualidades e atualidades que o grau de desenvolvimento de uma civilização já possibilita para todos seus integrantes e que se exprime em quaisquer dos planos antes mencionados. Definimos como prevenção a todas as operações específicas e afins destinadas a potencializar a saúde e impedir a enfermidade. Chamamos de cura ao conjunto de operações e seus resultados destinados ao pleno restabelecimento da saúde com o menor número de seqüelas possível e ainda com a perspetiva de um nível de qualidade de vida superior ao prévio que desencadeou a enfermidade. Denominamos reabilitação à plena e melhorada reinserção social, ao equilíbrio e aperfeiçoamento subjetivo e fortalecimento somático dos afetados por enfermidades, assim como ao incremento da sua capacidade de prevenir outras.

* Texto do Manual de Humanização da Assistência Hospitalar

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